Línguas ameaçadas: diversidade linguística em perigo

Gean Damulakis (DLF/FL/UFRJ)

População Indígena das Terras Indígenas – IBGE (2010)

Resumo: O Brasil tem um alto número de línguas ameaçadas de extinção. Nesse texto, fazemos a comparação desse número com os números de línguas na mesma situação em outros países.

Apesar de muitos pensarem e afirmarem que o Brasil é monolíngue, o país conta com uma das maiores diversidades linguísticas do planeta. Estima-se que por volta de 180 línguas indígenas sejam faladas no Brasil; acresça-se a esse patrimônio, as línguas de sinais (sendo a Libras a mais falada entre elas) e as cerca de 50 línguas de imigração, que ajudam a compor essa multiplicidade linguística. Entretanto não seria alarmista dizer que a maior parte de dessas línguas está sob ameaça de extinção.

Se compararmos os números atuais com as estimativas de quantas línguas indígenas existiam antes da colonização europeia, poderemos ter uma noção da perda linguística que esse processo impôs ao território que chamamos hoje de Brasil, como, em verdade, aconteceu em todo o continente americano. O violento processo colonizador teve como consequência a dizimação de muitos dos povos e, consequentemente, de suas línguas. Segundo algumas estimativas (Rodrigues, 2005), é possível apontar para a existência de cerca de 1200 antes da chegada dos primeiros portugueses ao Brasil. Se essa estimativa estiver correta, teríamos uma sombria média de cerca de 200 línguas desaparecidas para cada século a partir de 1500.

Mas o que é uma língua ameaçada?

Falamos de ‘língua ameaçada’ (ou ‘ameaçada de extinção’ ou ‘em perigo’) para nos referirmos a línguas que estejam sob risco de desaparecimento. Uma língua é considerada extinta quando não mais se encontram falantes nativos que a usem. A língua pode se extinguir por conta do extermínio do povo que a fala ou pelo abandono gradativo dela pelos seus falantes nativos, em processos de substituição linguística. Dessa forma, uma língua pode desaparecer mesmo que o povo que a falava sobreviva. Atualmente existem vários grupos indígenas que são monolíngues em português, por exemplo. Para termos uma ideia, há apenas uma língua ainda falada na Região Nordeste do Brasil (desconsiderado o Maranhão, que integra a Amazônia Legal), o Yathê (dos Fulni-ô), muito embora nessa região haja vários grupos indígenas (ver mapa acima), etnicamente distintos, alguns com terras demarcadas e outros que ainda lutam pelo reconhecimento de sua identidade e pela demarcação de suas terras. Boa parte desses povos se empenha em processos de retomada da língua ancestral. Apesar de muitos esforços terem sido dados nessa direção, o processo de retomada não é muito simples, e muito mais complexo do que o estabelecimento de políticas de manutenção das línguas atualmente faladas.

A perda da língua é sempre fruto de violência, seja ela física ou simbólica. Guerras, escravização e doenças levaram ao extermínio de vários povos, com suas línguas e culturas. Em relação às línguas indígenas ainda faladas no Brasil, em muitos lugares, essas línguas e seus falantes, além de sofreram com constantes invasões de suas terras, costumam ser discriminados. Muitos afirmam, equivocadamente, que os indígenas falam ‘dialetos’ ou ‘gíria’. Certa vez, em um povoado ribeirinho, em Eirunepé (AM), uma moradora (não indígena) me disse que seu marido sabia ‘cortar uma gíria’ como poucos, querendo dizer que seu marido falava certa língua indígena com relativa fluência.

A pesquisa sobre línguas indígenas ajuda fortemente para o registro e a manutenção dessas línguas. De todo modo, vale dizer que registros (teses, trabalhos, gravações etc.) de qualquer tipo não tornam menos lastimável a perda de uma língua, não torna menos lamentável o fato de uma língua deixar de ser meio de expressão de pensamentos, valores e história de grupos humanos. Dessa forma, a manutenção das línguas deve ser o grande primado que guia as pesquisas científicas com esses povos, que, por sua vez, podem orientar a elaboração de políticas públicas.

Como dissemos, há vários grupos étnicos no Brasil que não usam mais a língua original, sendo monolíngues em português. No último censo do IBGE (2010), foram computadas 274 línguas indígenas, distribuídas por 305 grupos distintos. É provável que esse número esteja inflado por conta dos critérios (não linguísticos) que embasaram o levantamento, como a autodeclaração. De todo modo, se compararmos esses números (e descartarmos grupos distintos que, eventualmente, usem a mesma língua[1]), veremos que há um número significativo de grupos que não usam mais a língua ancestral. Vale lembrar que, embora o censo do IBGE traga um número muito superior ao estimado pela maior parte dos linguistas, a maior parte delas conta com um número reduzido de falantes (autodeclarados), se considerado o mesmo levantamento (quadro 1).

Falantes autodeclaradosNúmero de línguasPercentual de línguas
Até 53312%
Até 105018%
Até 508531%
Até 10011241%
Quadro 1 – Elaborado a partir do Censo IBGE (2010)

Recentemente, órgãos internacionais têm chamado a atenção para esse processo de extermínio linguístico, ao indicar que parte considerável desse patrimônio da humanidade está ameaçado de extinção. Ao dizer que línguas estão ameaçadas de extinção, chama-se a atenção para o fato de que elas podem desaparecer em breve, se algumas medidas não forem tomadas no intuito de inverter esse quadro. Um desses órgãos é a UNESCO, que em 2016, publicou um Atlas[2] contendo uma lista de línguas ameaçadas ou extintas recentemente. Nesse inventário, o Brasil conta com 190 línguas nessa situação.

Critérios para a classificação do risco de extinção

Segundo a UNESCO, o perigo de extinção pode ser dividido em graus, dependendo, sobretudo, da idade dos falantes, transmissão da língua entre as gerações e situações de uso. Não é raro que nem todos os integrantes étnicos sejam fluentes na língua ancestral. Há casos de povos que se espalham por países distintos, apresentando, casualmente, exemplos de vitalidade diferentes nesses países. A seguir, vemos os critérios para classificar as línguas em perigo:

  • Vulnerável: a maioria das crianças fala a língua, mas ela pode estar restrita a certos domínios, como dentro de casa.
  • Definitivamente ameaçada – crianças não mais aprendem a língua como materna em casa.
  • Severamente ameaçada – a língua é falada por avós e gerações mais velhas; a geração dos pais pode entendê-la, mas não a fala com as crianças nem entre si.
  • Criticamente ameaçada – os falantes mais jovens são os avós e os mais idosos, que falam parcialmente e com pouco frequência.
  • Extinta – Não há mais falantes vivos da língua.

Mal na fita

Pode-se pensar que quanto maior é a diversidade linguística do país, maior é probabilidade de haver mais línguas ameaçadas. Nem sempre isso ocorre. O Brasil é o 10º país de maior diversidade linguística[3] do planeta (quadro 2).

PosiçãoPaísDiversidade linguística
1Papua Nova Guiné840
2Indonésia712
3Nigéria522
4Índia454
5EUA326
6Austrália314
7China308
8México292
9Camarões275
10Brasil221
Quadro 2 – Dados em www.ethnologue.com

Apesar dessa colocação em termos de diversidade, o Brasil sobe para a terceira posição entre os países com maior contingente de línguas ameaçadas (quadro 3), colocação pouco honrosa. Há apenas dois países com mais línguas ameaçadas que o Brasil: Índia e Estados Unidos. Os três são seguidos por China, México e Indonésia.

PosiçãoPaísLínguas ameaçadas
1Índia197
2EUA191
3Brasil190
4China144
5México143
6Indonésia143
7Rússia131
8Austrália108
9Papua Nova Guiné98
10Canadá87
Quadro 3 – Elaborado a partir de dados em http://www.unesco.org/languages-atlas/

Se cruzarmos os dados dos 10 países com maior número de línguas com os 10 com maior número de línguas ameaçadas, teremos dados pouco abonadores. Como vemos no quadro 4, no Brasil há 221 línguas, das quais 190 estão sob ameaça de extinção, o que representa cerca de 86% de probabilidade de uma língua da nossa diversidade estar ameaçada de extinção ou já estar extinta. Esse percentual coloca o Brasil em uma situação alarmante: entre os 10 países de maior número de línguas ainda vivas e os 10 com mais línguas ameaçadas, o país ocuparia a primeira posição em exposição de suas línguas ao risco de extinção.

Considerando esse índice, o Brasil atinge a incômoda posição de primeiro colocado. Dito de outra maneira: para cada 20 línguas faladas no Brasil, 17 estão numa situação que requer medidas urgentes. Mais drasticamente, dessas 190 línguas, todas são indígenas (http://www.unesco.org/languages-atlas/index.php). Ao observar os valores percentuais do quadro 4, podemos constatar que quatro dos cinco primeiros colocados são países americanos (Brasil, Canadá, EUA e México), o que nos mostra que o processo de perda linguística, iniciado nos primeiros anos da invasão europeia nas Américas, continua em marcha.

PosiçãoPaísLA/DLPercentual
1Brasil190/22186,4%
2Rússia131/15982,4%
3Canadá87/145[4]60%
4EUA191/32658,6%
5México143/29249%
6China144/30847,8%
7Índia197/45443,4%
8Austrália108/31434,4%
9Indonésia143/71220,1%
10Camarões36/27513,1%
11Papua Nova Guiné98/84011,6%
12Nigéria29/5225,6%
Quadro 4 – Percentual de línguas ameaçadas por país.

Como inverter o processo?

Não é uma resposta simples, mas precisamos nos debruçar urgentemente sobre a elaboração de soluções e de políticas públicas para inverter esse processo, garantindo a manutenção de nossa diversidade linguística. Os próprios falantes precisam tomar parte na elaboração de políticas públicas que versem sobre o tema. Vários grupos indígenas desenvolvem programas e têm lutado para que suas línguas e culturas não sucumbam ao avanço linguístico e cultural (mas não raramente físico) do entorno. É preciso que essas ações sejam apoiadas e fortalecidas. Precisamos assegurar o direito ao uso das línguas nativas, além da ampliação das suas esferas de uso. A garantia às terras indígenas tem papel fundamental nesse processo. No censo do IBGE (2010), o percentual de indígenas que declararam falar uma língua indígena era, no total, 37,4%; dentro das terras indígenas, esse percentual se elevava para 57,3%.

Saiba mais

RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. 2005. Sobre as línguas indígenas e sua pesquisa no Brasil. Ciência e Cultura, 57(2):35-38. Acessível em http://etnolinguistica.wdfiles.com/local–files/artigo%3Arodrigues-2005/rodrigues_2005.pdf.

RODRIGUES, Aryon Dall’Igna. Línguas brasileiras: para o conhecimento das línguas indígenas. Loyola: São Paulo, 1986 (http://etnolinguistica.wdfiles.com/local–files/biblio%3Arodrigues-1986-linguas/Rodrigues_1986_LinguasBrasileiras.pdf).

ROSA, Maria Carlota. 2021. As línguas brasileiras nativas. (Disponível em https://lefufrj.wordpress.com/2021/09/10/as-linguas-brasileiras-nativas/).

(Baixe o texto em PDF)

(Baixe o Mapa do IBGE/2010)

[Outros textos de divulgação: leia aqui]


[1] O próprio IBGE ressalta que “há ainda a necessidade de estudos linguísticos e antropológicos mais aprofundados, pois algumas línguas declaradas podem ser variações de uma mesma língua, assim como algumas etnias também se constituem em subgrupos ou segmentos de uma mesma etnia” (https://indigenas.ibge.gov.br/estudos-especiais-3/o-brasil-indigena/lingua-falada). Acesso em 28/10/2021)

[2] http://www.unesco.org/languages-atlas/index.php.

[3] Alguns rankings colocam o Brasil em 11º, atrás da República do Congo.

[4] Os números de línguas faladas no Canadá e na Rússia são os constantes em: https://en.wikipedia.org/wiki/Number_of_languages_by_country, os quais, em geral, têm pouca discrepância para os valores do quadro 1 para os demais países. A República do Congo, com duas línguas ameaçadas, ficaria em 13º lugar no quadro 4, com apenas 0,9% (2/214) de percentual de ameaça.

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